A trilogia Fundação, uma série de contos, noveletas e novelas escritos por Isaac Asimov nos anos 40, reúne uma gama de qualidades raramente encontradas no mesmo trabalho, o que resulta numa leitura fluida, repleta de surpresas, de embasamento impressionante – sobretudo em se tratando de ficção científica – e capazes de gerar suspiros e reflexões após o clímax. Não é à toa que Asimov é considerado largamente como o maior nome de seu gênero, e sua obra, tão essencial a ele como O Senhor dos Anéis para a fantasia.
A série se passa num futuro muito distante. Para se ter uma ideia, o homem ter surgido em um só planeta da galáxia é apenas uma suposição, menos aceita, inclusive, que a hipótese de ter surgido simultaneamente em vários planetas. Trantor, em posição central na Via Láctea, é um planeta todo coberto por uma única cidade, em estruturas metálicas e alguns trilhões de pessoas. É a sede de um império de 12 mil anos, que aparentemente é forte e nada indica que tem previsão de cair. Uma analogia com o Império Romano no século V, o que foi a grande inspiração de Asimov.
E eis que surge Hari Seldon. Matemático brilhante, ele usa as leis da termodinâmica em grandes populações, partindo do mesmo princípio: assim como é impossível prever os movimentos de um átomo, também é com uma pessoa; porém é previsível como se comportará um gás – e também uma grande população. Quanto maior a população envolvida, e menor a quantidade de tempo da previsão, mais acurada ela é.[1] Hari, com sua nova ciência, faz uma descoberta terrível: o Império não só está fraco, como sua queda é irreversível nos próximos séculos. Ocorre o óbvio com ele: é acusado de traição, e precisa se explicar num julgamento em Trantor, no qual, de forma bela, compara a aparente imponência do Império com uma árvore morta, que parece cheia de vida por fora, mas é oca, e sua casca pode ser arrancada com as mãos.
O primeiro conto é narrado por um cientista que vai trabalhar com Seldon sem saber direito no que está se metendo, e acompanha todo esse processo, e o desfecho, no qual se revela a genialidade do matemático, de longe, o mais importante personagem da saga. Seldon, se não pode impedir a queda do Império, e nem os 30.000 anos de barbárie e guerras entre poderes menores que se seguirão, faz o que pode com seus cálculos, para que o conhecimento seja preservado, e esses 30 milênios se reduzam a 1. Bem-vindos à saga Fundação!
No primeiro livro, Fundação, lemos contos espaçados no tempo em décadas, de um para o outro, e nos acostumamos às principais características da série: um lapso do tempo entre uma estória e outra, o desconhecimento dos personagens do contexto em que vivem por completo – outra grande sacada de Asimov, pois só se compreende períodos históricos com clareza quando eles já passaram, e não durante sua ocorrência –, e as surpresas proporcionadas por enredos inovadores, uma verdadeira escola de como escrever uma boa estória.
Já no segundo, Fundação e Império, e no terceiro, Segunda Fundação, a estrutura passa a ser de duas novelas por livro, com tramas mais complexas e maiores, mas ainda assim preservando as derradeiras surpresas, e a tradicional coerência.
Sendo um escritor de pulps, Asimov escrevia sem parar, recriando-se o tempo todo – o que se vê também em Robert E. Howard, Lovecraft e outros grandes nomes da clássica literatura fantástica. Isso, principalmente para o universo de Fundação, contribui de forma decisiva para sua credibilidade. Mesmo a psico-história, a ciência de Seldon, tem suas limitações, o que se vê, por exemplo, na imprevisibilidade do Mulo, que surge na segunda novela do segundo livro, uma das mais interessantes personagens da saga – mas que perde, a meu ver, para Seldon e suas aparições holográficas ao longo dos séculos. Nos anos 80, ao escrever Fundação II (Foundation’s Edge) a pedido de seus editores, Asimov chacoalhou mais ainda o seu universo, 500 anos depois do primeiro conto, e, como é tradicional de suas criações, sem gerar qualquer tipo de contradição.
Após a leitura da série Duna, de Frank Herbert (principalmente os dois primeiros livros), confesso que não esperava tamanha conjunção de qualidades em outro trabalho de ficção científica – ou mesmo de literatura. Fundação, porém, não perde em nada: mitologia soberba, reviravoltas, filosofia grandiosa, e personagens marcantes. E, se Duna falha ao decair a qualidade ao longo dos livros, Fundação mantém o nível – e, no quarto volume, arrisco a dizer que cresce.
A Aleph publicou, recentemente, um box da trilogia de linda qualidade gráfica, papel amarelo menos cansativo e capas chamativas, antológicas, até. Pena não terem feito isso ainda para o resto da série – foi duro ler Fundação II com fonte 8 e em formato pequeno, da edição que adquiri num sebo.
Fundação é basilar não só para entusiastas de ficção científica, como para todo amante de uma boa estória. E, para quem se arrisca a escrever, é uma aula atrás de outra.
[1] E eis a capacidade incrível de previsão de Asimov. Algo impensado nos anos 40, tais previsões embasadas por cálculos se tornaram frequentes nos serviços de inteligência de vários países, e muitas delas se tornaram públicas em livros e artigos nos anos 90 e 00.