Quando eu era adolescente assinava as revistas da Editora Abril, que na época publicava quase todas as HQs de super-heróis do Brasil. E sempre que chegava eu lia primeiro as do Super-Homem, não porque eu gostasse mais delas do que as outras, mas que eram tão ruins, mas tão ruins que eu queria me livrar delas logo pra poder ler calmamente as que eram legais de verdade (saía mais barato comprar o pacote com todas do que deixar de compra-las). E percebo que isso é uma sina comum, histórias boas do Super-Homem são raras (pós silver age). Admito que ele é um personagem difícil de lidar, quase invencível, super certinho, exemplo de integridade, sem dilemas morais ou éticos… fica difícil fazer um desafio pra esse cara, a Kryptonita só pode ser usada algumas vezes antes de perder a graça. Mesmo assim, existem algumas poucas histórias que gosto muito e essa é a ideia desse texto
Superman: Peace on Earth (Super-Homem : Paz na Terra)
Essa história fofinha e cuticuti é um ponto inicial perfeito pra quem não gosta de HQs de super-herói e não iria apreciar a profundidade de Watchmen ou do Reino do Amanhã. Alex Ross (Reino do Amanhã, Marvels) com sua arte fotorealista e Paul Dini (da série animada do Batman e do Super-Homem de queixo quadrado) encontram um desafio para o homem mais poderoso da Terra: a fome no mundo. No Natal ele resolve realmente fazer a diferença. Por um dia, 24hs, ele percorrerá o mundo pegando doações, excedentes, comidas que estão pra vencer e distribuirá onde é mais preciso. Durante essa maratona (inclusive passando pelas favelas no Rio) ele encontra pessoas desesperadas, esperançosas, felizes, subjugadas, destruídas, agradecidas, raivosas… vários aspectos da natureza humana que surgem no limite da sobrevivência. Em meio ao alívio que uma das entregas causa num povo um menino pergunta ao herói: “Você vai voltar amanhã?” Nosso herói apenas vira o rosto, sem coragem de encarar a realidade de que o que ele está fazendo é paliativo, que realmente não irá mudar a vida dessas pessoas, é apenas um alívio, um intervalo no sofrimento. Ao analisar as reações a seu trabalho no dia seguinte ele reafirma o óbvio, esse problema é demais pra um homem fazer sozinho, mesmo um Super-Homem, depende de cada pessoa fazer a sua parte para que, como o pai dele diz na lavoura: “Nem todas as sementes vão vingar, mas todas merecem uma chance de crescer”. Chorei arco-íris.
Superman: For All Seasons (Super-Homem: As Quatro Estações)
Não sou fã do Loeb (O Longo Dia das Bruxas, série de TV Heroes) mas ele acertou a mão nessa, junto com a arte sempre bela de Tim Sale (O Longo dia das Bruxas, Dark Victory). São 4 edições, cada uma de um ponto de vista diferente (Jonatham Kent, Lois Lane, Lex Luthor e Lana Lang). É pra mim a história definitiva da “origem” do Clark Kent. E por origem não quero dizer aquela do planeta explodir, ele ser adotado por uma familiazinha americana e resolve ser repórter e salvar o mundo. Essa história é boba e explica apenas de onde vieram os seus poderes, não explica as perguntas mais fundamentais: Se ele (ou você) pudesse fazer qualquer coisa, qualquer coisa, porque escolher salvar o mundo 24hs por dia? Como seria a relação entre um ser invencível e seres que, pra ele, são frágeis como formigas? Até que ponto ele (você) abusaria das habilidades pra conseguir aquele emprego, pra ganhar aquele jogo, pra conquistar aquela mulher? E se ele (você) escolheu usar os seus invencíveis poderes para salvar as pessoas, o quanto é suficiente, quantas pessoas? Quanto do seu tempo ele (você) vai dedicar a isso e ainda conseguir viver uma vida? E, claro, até que ponto os fins justificam os meios? Adoro a parte em que o jovem Clark salva a vida de uma pessoa em um tornado e angustiado pergunta ao padre: “e se alguém pudesse salvar MAIS pessoas?” “ora Clark, você já fez mais do que poderia se esperar, salvou uma vida!” “mas e se alguém pudesse salvar todas as pessoas (e não tivesse…)” “Clark… ninguém poderia ter salvo todas as pessoas…” ao se afastar do padre Clark diz para seu pai: “Eu deveria ter feito mais”. E são essas palavras que irão persegui-lo pelo resto da vida.
For the Man Who Has Everything (Para o homem que tem tudo)
Esta é mais uma pérola de Alan Moore (Watchmen, V de Vingança) e Dave Gibbons (Watchmen, Give me Liberty), ela começa com o Batman e a Mulher Maravilha discutindo o que dar de presente para o Super-Homem, “o homem que tem tudo” e o encontram em um estado vegetativo com uma planta alien brotando do peito. A história agora se divide em duas, uma tem Batman, Robin e Mulher Maravilha lutando contra o poderoso Mongul, responsável pelo estado do Super e a outra segue o que acontece na cabeça do Super-Homem – e essa é a parte interessante. A tal planta prende a pessoa num sonho em que o que a pessoa mais quer, o mundo ideal, se torna realidade. E qual o sonho do “homem que tem tudo”? Viver em Krypton, casado, um filho, acorda, trabalha, visita o pai… uma vida comum, sem as responsabilidades de ter que ser o salvador da humanidade todos os dias. Um lugar em que ele é igual, e as vezes até um pouco menor que os outros. É épica a cena final do sonho, quando no mundo real estão extraindo a planta do peito dele e o super chora ao dizer ao seu filho que acha que mesmo o amando muito e o tendo visto nascer… acha que ele não é real… e que ele precisa voltar a realidade. E eu deixo pra você imaginar o final, se alguém te dá tudo o que você mais quer… e depois tira, não seria uma das coisas mais cruéis já feitas?
Superman: Secret Identity (Super-Homem: Identidade Secreta)
Eu tinha sérios preconceitos com a sinopse desta história de Kurt Busiek (Marvels, Astro City) e Stuart Immonen. Parecia boba. Hoje em dia, num mundo como o nosso em que super-heróis só existem nos quadrinhos, cresce no Kansas uma criança na família Kent. Como o Super-Homem é um personagem famoso dos quadrinhos e do cinema, os pais da família Kent resolvem chamar o filho de Clark. Clark Kent, como o personagem. O Jovem Clark sofre por causa do nome, excesso de presentes e fantasias de Super-Homem, piadinhas, bullying no colégio, resultado: ele odeia o Superman. Na adolescência ao ir acampar (sozinho) Clark descobre que (inexplicavelmente) ele possui os poderes do Super-Homem, como nos quadrinhos! E agora? Essa história traz um herói muito mais humano que o Superman clássico, por ser uma reimaginação do mythos do Super-Homem e não interferir com a cronologia do personagem, o autor tem liberdade para fazer questionamentos que nunca seriam permitidos na série mensal. Acompanhamos a evolução de Clark da adolescência até a velhice com os netos. Passando pela busca de conhecimento sobre o que fazer, seus amores, preocupações, relações com o governo e imprensa e pro fim, a busca de sua própria identidade. Apesar de no final ele errar a mão de um jeito bobo, a história é muito bem feita e discute várias das mesmas questões levantadas nas história anteriores.
Apêndice:
Existem outras histórias que considero dignas de nota, por serem obviamente inspiradas (copiadas) no Mythos do Super-Homem, mas que não são com o personagem oficial, ou histórias que não são do Super-Homem, mas nas quais ele tem um papel fundamental.
Astro City Vol 1 (Samaritano) de Kurt Busiek, Alex Ross e Brent Anderson
Ótima visão de como seria se todas as coisas dos quadrinhos, por mais absurdas, realmente existissem.
Irredeemeable de Mark Waid e Peter Krauser
Uma versão do Super-Homem que é tomada pelo orgulho, meio longa demais, mas tem boas passagens na psique de uma mente que tomba a frente de responsabilidades avassaladoras.
A História do Ano (Supremo) de Alan Moore
É realmente difícil descrever a complexidade dessa história, conhecer a história da indústria dos quadrinhos e do Superman em particular vai ajudar bastante a apreciar.
O Reino do Amanhã de Mark Waid e Alex Ross
Essa não é só do Super-Homem mas tem algumas das melhores cenas dele. É uma batalha metalinguistica épica entre o código moral dos anti-heróis atuais que matam (a la Wolverine) e super-heróis clássicosmais certinhos.